Pílula Penal

Blog do Henrique Gonçalves Sanches

A questão do pagamento nos crimes contra a ordem tributária.

Extinção da punibilidade ou condição para acordo de não persecução penal?

Examinam-se os efeitos penais do pagamento da dívida tributária em face do acordo de não persecução penal.

Nunca foi surpresa que o Estado se utiliza do direito penal de maneira totalmente ilegítima e com desvio de função para coagir os contribuintes na cobrança de dívidas tributárias. Também é de conhecimento geral a complexidade do sistema tributário nacional, e não seria diferente em relação aos crimes contra a ordem tributária, principalmente quando se trata dos efeitos penais do pagamento do débito tributário.

Neste sentido, a Lei 4.729/65, primeira legislação penal que tratou de delito tributário no país, já no seu artigo 2º dispunha da hipótese de extinção da punibilidade em razão do pagamento do tributo devido, desde que ocorresse antes do processo administrativo de lançamento.

Depois de anos, após tantas idas e vindas legislativas, em 1º de março de 2011 entrou em vigor a Lei 12.382, a qual por meio do art. 6º introduziu importantes mudanças no artigo 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996. Ficara ali definido que “É suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal”.[1]

Com intepretação no novel § 4º do art. 83 da Lei 9.430/96, ali inserido por força do artigo 6º da Lei 12.382/11, uma respeitável doutrina tem entendido que o pagamento do tributo para extinguir a punibilidade deve ocorrer antes do recebimento da denúncia. Neste sentido, RENATO BRASILEIRO[2] defende que se o parcelamento capaz de suspender a pretensão punitiva deve ser efetivado antes do recebimento da denúncia, é de se concluir também que o o débito fiscal deve seguir esse marco temporal, operando assim, a revogação tácita do art. 9º§ 2º da Lei 10.684/03 e o artigo 69 da Lei 11.941/09.

Entretanto, os Tribunais Superiores têm entendido de maneira pacificada que, com a edição da Lei 10.684/03, não fora fixado um limite temporal dentro do qual o pagamento da obrigação tributária e seus acessórios importaria na extinção da punibilidade.[3] Aliás, estes Tribunais têm declarado a extinção da punibilidade em razão do pagamento do tributo em qualquer momento, mesmo após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.[4]

Ocorre que, em razão da vigência e validade da Lei Nº 13.964/2019[5], conhecida como Lei Anticrime, fora inserido no Código de Processo Penal o artigo 28-A, o qual prevê a hipótese do acordo de não persecução penal nos seguintes termos: “Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:(…)”

Assim, tendo em vista que os crimes contra a ordem tributária têm pena mínima inferior a 4 (quatro) anos de reclusão, hipoteticamente, estarão suscetíveis de incidência de acordo de não persecução penal. Logo assim, a questão que se faz inquietante é definir os efeitos penais do pagamento do tributo, eis que é um dos requisitos para a concessão do benefício “reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;” (art.28-A, inciso I do CPP).

Enfim, o pagamento do débito tributário seria condição para concessão do acordo de não persecução penal ou a própria extinção da punibilidade?

Acreditamos ser causa de extinção da punibilidade.

O pagamento do tributo de forma alguma pode ser considerado como condição de concessão do benefício do acordo de não persecução penal por, no mínimo, quatro razões: i) A reparação do dano não é clausula absoluta em razão da expressa excludente “(…)impossibilidade de fazê-lo”; ii) se pode ocorrer a qualquer tempo, mesmo após o trânsito em julgado, não é lícito exigi-lo previamente ao recebimento da denúncia; iii) o Estado pode se valer da execução fiscal na cobrança da dívida; iv) aquele negócio jurídico é mais gravoso e desproporcional para o contribuinte investigado em relação a própria extinção da punibilidade;

Sob enfoque diverso, a intepretação histórica e sistemática do direito penal tributário nos informa que, por mais de duas décadas, a essência da legislação sempre foi a extinção da punibilidade em troca da efetiva arrecadação. Neste sentido, DAVI DE PAIVA COSTA TANGERINO e RAFAEL BRAUDI CANTERJI[6] atestam que jamais existiu tamanha benesse na seara extra – direito penal econômico, eis que, nesta contramão, o Código Penal apenas concedia redução de pena para determinados delitos tidos como comuns, desde que ocorresse reparação do dano ou a restituição da coisa.

Podemos, inclusive, defender a impossibilidade da natureza de condição de acordo de não persecução penal ao interpretar analogicamente a hipótese do pagamento da dívida tributária na forma de reparação do dano como condição de suspensão condicional no processo. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio da sua 13ª Câmara Criminal, ao julgar o Habeas Corpus 2102385-65.2018.8.26.0000, teria ali decidido que “A exigência, no caso, afeiçoa-se desproporcional, pois a reparação do dano teria como consequência a própria extinção da punibilidade. Como prevista, na verdade e por via transversa, calha como impedimento incoerente ao benefício do artigo 89 da Lei n. 9.099/95. Afinal, a lógica evidencia que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo.”[7]

Por estas razões, entendemos que o pagamento da dívida tributária deve ser considerado causa extintiva de punibilidade e não condição do acordo de não persecução penal em crimes contra a ordem tributário, haja vista a sua histórica e escancarada disfuncionalidade meramente arrecadatória, qualificada como um “upgrade nas sanções tributárias”[8].

Henrique Gonçalves Sanches

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