Pílula Penal

Blog do Henrique Gonçalves Sanches

O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL EM CRIME DE RACISMO.

Este conteúdo foi elaborado com a pretensão de esclarecer o leitor sobre as principais questões levadas a julgamento nesta causa pelo Supremo Tribunal Federal.

Boa leitura!

1. Breve noção de racismo e condutas discriminatórias.

Nesta exposição de ideias, e sem qualquer rigor conceitual, vou me utilizar do art.1º combinado com o art. 20, letra “c” da Lei de Racismo (Lei nº 7.716/89), com importantes alterações trazidas pela recente Lei 14.532/2023, para esclarecer ao leitor o critério utilizado na definição de discriminação racial:

Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”(art. 1º).

(…)

“Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.”(art.20, “c”).

Neste contexto de interpretação, a lei define várias condutas como racistas, por exemplo:

  • Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional;
  • Negar ou obstar emprego em empresa privada;
  • Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador;
  • Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar.

    2. O que é o acordo de não persecução penal (ANPP)?

    O acordo de não persecução penal é instrumento de justiça penal consensual, onde, em casos de delitos de media potencialidade lesiva, desde que preenchidos os requisitos legais, a parte acusadora e o investigado acordam condições que, uma vez cumpridas, ocasionarão a extinção da punibilidade, contudo, sem a necessidade de deflagração da ação penal. 

    Para conhecer mais sobre o acordo de não persecução penal leia em: https://www.henriquegoncalvessanches.com.br/o-acordo-de-nao-persecucao-penal-5-questoes-praticas-que-voce-precisa-conhecer.

    3. Quais os requisitos do acordo de não persecução penal? 

    Nos termos do art. 28 -A do Código de Processo Penal, são requisitos para a celebração do ANPP:

    • não ser caso de arquivamento do inquérito policial;
    • ter o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática do delito; 
    • não ser delito caracterizado pela violência ou grave ameaça à pessoa; 
    • a pena mínima prevista em abstrato deve ser inferior a 4 (quatro) anos; 
    • atender aos critérios de necessidade e suficiência na prevenção e reprovação do crime.

    O referido artigo ainda traz circunstâncias para proibir a celebração do acordo: 

    • se for cabível transação penal; 
    • se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional; 
    • ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo;
    • nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. 

    4. A respeito do acordo de não persecução penal em crime de racismo , o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RHC 222.599?

    A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, por 3 votos a 2, que não é possível a celebração do ANPP em crimes de racismo e injúria racial.

    5. Qual foi a justificativa utilizada para o não reconhecimento da possibilidade de celebração do ANPP em crime de racismo?

    O voto do Ministro Relator Edson Fachin prevaleceu por entender que o alcance material do ANPP não deve abarcar os crimes raciais. Em síntese, decisão se justificou nas seguintes questões: 

    • na necessidade de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, sendo estes um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º CF); 
    • a delimitação do alcance material para a aplicação do acordo despenalizador exige conformidade Constitucional e com os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro internacionalmente; 
    • o texto constitucional determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdade fundamentais.”; 
    • o Brasil se comprometeu no plano internacional a prevenir, eliminar, proibir e punir severamente, todos os atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância; 
    • o Plenário da Suprema Corte, ao julgar o Habeas Corpus 154248, decidiu pela imprescritibilidade do crime de injúria racial;  
    • ainda que os crimes raciais sejam punidos com reprimenda que se adequa aos requisitos objetivos à apresentação de proposta de acordo de não persecução, “os bens jurídicos protegidos, a dignidade e a cidadania racial não podem constar de objeto de qualquer negócio jurídico, sob pena de a pedagogia inserida na construção do processo de redução das desigualdades raciais perder seu norte substancial: o de aniquilar qualquer significação das pessoas negras como inferiores ou subalternas”; 
    • sob a forma de interpretação teleológica, se em casos de violência doméstica, familiar e contra a mulher em razão do sexo está proibida a celebração do acordo como forma de fortalecimento à proteção de direitos humanos, idêntico tratamento cabe aos crimes raciais. 

    6. Pela possibilidade do ANPP em questões raciais: o voto do Ministro André Mendonça.

    De maneira contrária ao entendimento do voto do relator , o Ministro André Mendonça entendeu ser possível a celebração do ANPP em casos de racismo e injúria racial por entender que: 

    • O rol de hipóteses excludentes do acordo de não persecução penal, previsto no art. 28-A, § 2º, do CPP, não comporta analogia in malam partem para compreender, além dos crimes de violência contra mulheres, em razão do sexo, também aqueles crimes cometidos em razão da raça; 
    • “O ditame constitucional é claro: não há crime sem anterior lei que o defina, nem pena sem prévia cominação legal – inc. XXXIX do art. 5º –, princípio a partir do qual construído todo o arcabouço constitucional em matéria penal.”
    • “A estrita legalidade, no que direciona à ortodoxia na interpretação da Constituição da República em matéria penal, não viabiliza ao Tribunal, em desconformidade com expressa e clara restrição contida na Lei Maior, esvaziar o sentido literal do texto, mediante a complementação de tipos penais.”; 
    • entender de maneira contrária, ter-se-á usurpada a competência do Congresso Nacional para legislar sobre Direito Penal e Processual Penal – art. 22, inc. I, da Constituição da República.[…]”.

    7.Conclusão.

    A discussão a respeito da celebração do acordo de não persecução penal nos crimes raciais é tema polêmico. Isso porque no Brasil, o combate e consequente agravamento de punição em crimes deste gênero advém de compromissos assumidos no plano do Direito Internacional, além da magnitude constitucional, máxime por estar elencado como princípio fundamental e objetivo da República. 

    Neste sentido, num primeiro olhar, não parece guardar qualquer relação de lógica do legislador em agravar punições às condutas racistas e, concorrentemente, possibilitar a negociação de medidas despenalizadoras ou condições extintivas de punibilidade para estes mesmos crimes.

    Entretanto, vale destacar que, ao contrário da Lei Maria da Penha, atualmente, não existe qualquer disposiçãoexpressa no artigo 28-A do CPP, na Lei de Racismo (lei nº 7.716/1989), tampouco na novel lei nº 14.532/2023, a qual tipificou como crime de racismo a injúria racial, para proibir a negociação de medidas despenalizadoras em crimes raciais.

    Neste ponto, entendo que não caberia ao Supremo Tribunal Federal invadir a competência do legislativo para proibir aquilo que a lei não o fez, sob evidente afronta ao princípio da legalidade.

    Como visto, a questão é complexa, as justificativas levadas à colação nos votos do Ministros neste julgamento do STF são respeitáveis e, por razões óbvias, não tive a pretensão neste texto de aprofundar ou esgotar a análise do (des) acerto da decisão. 

    Espero que este conteúdo ajude o colega leitor a entender, inicialmente, as questões jurídicas envolvidas neste importante julgamento pela Suprema Corte num tema de extrema relevância: o combate ao racismo. 

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